Faço parte do rol dos que, cada vez mais, usam as plataformas sociais para manifestarem o seu direito à indignação, compaginado com a liberdade de expressão e com todos os outros direitos que nos têm sido “temporariamente” retirados pela alegada “situação de emergência” do país.
É sobretudo um acto de cidadania que visa demover outros cidadãos menos atentos e interventivos para que se conscientizem de que “todos têm a mesma dignidade social” (Const.art.13) e que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.” (art.1).
Começa a ser cansativo e indegesto ouvir e ver a informação que é diariamente distribuida pelos media, seja através de declarações políticas, seja por intermédio dos mais diversos comentadores que preenchem as emissões noturnas dos canais televisivos.
Os investigadores históricos, no futuro, terão muita dificuldade em definir quais as actuais correntes de pensamento político e as propostas económicas para a saída da crise. Para o governo a reforma do estado passa pela consagração do neoliberalismo e pela redução das funções do estado social consagradas na constituição; a oposição contesta mas não define, claramente, quais os caminhos alternativos. O povo mantém-se à parte, desiludido, mas cada vez mais indignado e descrente dos protagonistas políticos.
Enquanto se mantém o impasse, que serve sobremaneira os senhores do dinheiro e as nações ricas, agravam-se a desigualdades, instaura-se a insegurança nos mais fracos e desprotegidos, e cresce o número dos sem-voz que abafam a fome, o desemprego, a perda de direitos, até que a “tampa rebente” e a revolta social se instaure e abale o clima de paz pôdre em que vivem os estados membros da União Europeia.
Há 45 anos, quando o ambiente geopolítico vivia sob a ameaça da “guerra fria” que dividia o mundo em dois polos antagónicos – capitalista e comunista – o Papa Paulo VI publicou a encíclica “Progresso dos Povos”, defendendo que o desenvolvimento – novo nome da paz - deveria basear-se na dignidade humana e dos povos, e na solidariedade entre as nações.
Estávamos em 1967. Portugal vivia o terror da guerra colonial, a emigração clandestina rumava à Europa central, a ditadura coarctava liberdades individuais e coletivas e reprimia os opositores ao regime com prisões arbitrárias.
O documento considerado uma explicitação da constituição conciliar sobre “A Igreja no Mundo contemporâneo” foi muito bem recebido pela oposição e pela “igreja do silêncio”, e o próprio papa em Fátima, lançou um veemente apelo: “Homens, sede homens! Homens, sede dignos do verdadeiro dom da paz!”
Vinte anos mais tarde, João Paulo II, (visitou os Açores em 1991), como que preanunciando a queda do muro de Berlim em 89, retomou e projectou a doutrina de Paulo VI, explicitando na encíclica “A Solicitude Social da Igreja”(SSI), o seu entendimento sobre a problemática social do final do século.
Para o Papa “a Igreja tem uma palavra a dizer” sobre a questão social, embora admita que Ela “não tem soluções técnicas para o problema do subdesenvolvimento”, nem “propõe sistemas ou programas económicos e políticos”. Todavia, toma posição porque “a Igreja é perita em humanidades(...) e cumpre a missão de evangelizar ao dar a sua contribuição para a solução do urgente problema do desenvolvimento“.(SSI nº41)
O documento cuja actualidade se mantém, deveria ser revisitado e difundido pois “o ensino e a difusão da doutrina social fazem parte da missão evangelizadora da Igreja(...) e do seu múnus profético que compreende também a denúncia dos males e das injustiças”. (SSI nº41)
Refletindo sobre o caso português, somos levados a concluir que o país, tal como refere a encíclica, vive num “abismo”, num “sentimento de frustração ou desespero”, “impelindo muitas pessoas para a emigração e favorecendo ao mesmo tempo uma espécie de emigração psicológica”(nº15).
Ao falar das dívidas dos países, afirma-se que “a razão que levou os povos em vias de desenvolvimento a aceitarem a oferta de abundantes capitais foi a esperança de os poderem empregar em actividades de desenvolvimento”, mas essa ajuda “transformou-se num mecanismo contraproducente” (nº19) que os torna “vítimas de um neocolonialismo de que tentam libertar-se”.(nº 21)
Daí o Papa defender que “nas relações internacionais, a interdependência deve transformar-se em solidariedade” entre as nações, para superar as diferenças sociais e o fosso entre os povos desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, tendo por base a prática dos direitos humanos. A “paz – continua a encíclica - exige cada vez mais o respeito rigoroso da justiça e a distribuição equitativa dos frutos do verdadeiro desenvolvimento” (nº 26) “destinados a todos”.
Pode perguntar-se que doutrina económica ou política defende a Igreja. A resposta é esta: “a Igreja adopta uma atitude crítica, quer em relação ao capitalismo liberal, quer em relação ao colectivismo marxista”(nº 21).
No actual momento do país, revemo-nos nestas considerações e propostas que relevam, sobretudo, o princípio da solidariedade como “caminho para a paz e para o desenvolvimento”(nº 39).
Quão diferentes são os critérios que regem os discursos e a prática de tantos agentes políticos. Daí a minha indignação.
Há caminhos alternativos às concepções políticas e económicas vigentes que têm a equidade e a solidariedade entre povos e nações, a justiça e a repartição equitativa dos bens da humanidade como paradigma e referencial necessário para a construção da paz e do progresso.
Falta, porém, coragem para os pôr em prática e atacar as injustiças!
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